Avaliação hormonal na reprodução de espécies selvagens

O monitoramento endócrino não invasivo através de amostras biológicas como fezes, urina e saliva vem se tornando uma alternativa muito viável e comumente é a primeira escolha em estudos do estresse e fisiologia reprodutiva em diversas espécies, tanto as domésticas, como cães e gatos e mais recentemente em espécies selvagens, cativas e de vida livre. Essa abordagem vem contribuindo para uma maior conexão e integração entre áreas multidisciplinares, gerando informações de alta qualidade e detalhamento a respeito do comportamento de várias espécies, do bem-estar animal, medicina e biologia da conservação, reprodução, entre outros.

A forma como cada indivíduo interage com o meio ambiente e a capacidade de sobreviver às mudanças sofridas em seus habitats interfere diretamente com o sucesso reprodutivo dessas espécies, sendo esses elementos essenciais para a conservação da vida selvagem. Tais elementos vêm sendo avaliados em diversos estudos e principalmente, em trabalhos comportamentais, relacionados ao estresse crônico, as disfunções reprodutivas consequentes, e a função dessa avaliação como um importante indicador de bem estar, aplicado tanto a animais de zoológicos e criatórios quanto a animais de vida livre.

A avaliação hormonal é também indispensável para os estudos em reprodução, fornecendo informações a respeito da fisiologia reprodutiva da espécie em foco. A dosagem desses hormônios e/ou metabólitos (fração hormonal) gera dados importantes a respeito do ciclo estral (reprodutivo), por exemplo, como a duração, os níveis mínimos e máximos, se existe ou não preferência pela época do ano para a reprodução, idade de maturidade sexual bem como a senilidade reprodutiva.

Conhecer a fundo todos esses parâmetros de atividade hormonal, níveis circulantes de cada hormônio em determinados períodos, bem como função ovariana/ciclos estrais nas fêmeas e sazonalidade reprodutiva nos machos é muito importante para o sucesso da reprodução ex situ (fora do habitat natural, como em zoológicos, por exemplo) e in situ (no ambiente natural). A escolha da metodologia de monitoramento hormonal para animais selvagens é baseada na espécie que será estudada, nos objetivos da pesquisa e na viabilidade da coleta de amostras.

Monitoramento invasivo x não invasivo

Existem duas formas para acessar a flutuação hormonal em um indivíduo: os métodos diretos: por meio da quantificação hormonal circulante no sangue (mais invasivo), e por meio de métodos indiretos, através da quantificação de hormônios e metabólitos hormonais excretados via urina, fezes, saliva ou pelos (metodologia não invasiva). Sendo as técnicas não invasivas as mais utilizadas atualmente nos trabalhos que envolvem avaliação e quantificação hormonal em animais selvagens, em grande parte pela facilidade de coleta e fidelidade dos dados obtidos.

Cada metodologia apresenta prós e contras para sua aplicabilidade. Por exemplo, a dosagem hormonal a partir do plasma sanguíneo oferece resultados em tempo real, além do baixo custo das análises e a facilidade/rapidez do processamento das amostras, o que representam uma grande vantagem. Porém uma desvantagem para essa colheita é a necessidade da contenção e/ou sedação e anestesia do animal, que podem ser altamente estressantes, influenciando diretamente os níveis de diversos hormônios, se tornando muitas vezes impraticável na maioria dos estudos. Nesse ponto as técnicas não invasivas, onde a mensuração dos níveis hormonais e/ou de metabólitos é feita a partir de secreções facilmente coletadas se mostram mais vantajosas, oferecendo um intervalo de atividade endócrina mais prolongada e, portanto mais fiel ao estágio fisiológico do indivíduo sem sofrer influência de efeitos estressores nem de fármacos.

Além disso, o monitoramento de alguns processos comportamentais e reprodutivos (ciclos ovarianos, a prenhez, ou a atividade de glândulas como as adrenais) geralmente necessita de um desenho amostral longo, sendo necessária a colheita de amostras em um mesmo indivíduo com determinada frequência, por um período longo de tempo. Esse é um fator complicante para o uso desse tipo de amostragem, já que a maioria dos animais precisaria passar por interferência farmacológica frequentemente. As coletas de amostras fecais, todavia, são as mais indicadas para o uso de técnicas não invasivas, levando em conta a possibilidade de coletas diárias em horários distintos sem a necessidade de qualquer tipo de contato com os animais avaliados.

Outro ponto desfavorável ás técnicas invasivas é que certos fármacos também alteram a secreção de alguns hormônios, (isso pode ocorrer de forma espécie específica), de modo que a colheita de amostras deve ocorrer imediatamente após o início do plano anestésico para uma quantificação hormonal mais precisa. A colheita, dessa forma, torna-se ainda mais complexa quando é necessária que ocorra in situ, ou seja, no habitat de ocorrência daquela espécie. A captura de um animal em seu ambiente natural é uma atividade complexa e bastante onerosa em alguns casos. Além disso, a recaptura desse indivíduo para a realização do monitoramento é praticamente impossível! Com o intuito de transpor essas dificuldades associadas ao monitoramento hormonal em amostras sanguíneas, os métodos não invasivos foram desenvolvidos.

Aplicabilidade

As análises de hormônios reprodutivos ou hormônios de origem adrenal excretados em urina, fezes ou outras secreções são as técnicas mais comumente utilizadas para a avaliação da atividade fisiológica e comportamental em espécies selvagens, como no estudo com veados-campeiro (Ozotoceros bezoarticus) em ambiente natural, no qual foram considerados fatores ambientais como a estação do ano, ciclo de chifres, presença humana, reprodução e agrupamento, foram avaliados em relação ao estresse de machos de veado-campeiro  de vida livre. Já em trabalhos de animais de cativeiro, gato-do-mato-pequeno (Leopardus tigrinus) e gato-maracajá (Leopardus wiedii) foi possível observar que elementos como tamanho reduzido e baixa qualidade dos recintos (sem cordas, vegetação, substrato variado, etc) tinham uma correlação positiva com os níveis fecais de glicocorticóides nas fêmeas dessas espécies.

Até pouco tempo informações sobre dados endócrino-reprodutivos de algumas espécies de difícil manejo (como indivíduos de vida livre) eram praticamente desconhecidas devido aos riscos e limitações relacionados à contenção seja física ou farmacológica, estão hoje em dia disponíveis em diversos estudos e em franco desenvolvimento.

Por meio da avaliação hormonal não invasiva é possível avaliar as respostas fisiológicas a alterações comportamentais relacionadas a diferentes condições ambientais. Avaliar o estado hormonal de um indivíduo/população usando essas técnicas é, portanto a chave para o manejo e a conservação dessas espécies em cativeiro e em meio selvagem. Essa tecnologia vem trazendo informações valiosas sobre a ecologia, comportamento e fisiologia da reprodução de espécies selvagens, e através desses estudos a correlação entre hormônio-comportamento-ambiente e o impacto das atividades antrópicas fica cada vez mais clara e aplicável no contexto da conservação da fauna.

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